Desmistificando: Deficiência auditiva

Continuando nossa série de textos que tentam desmistificar e informar sobre algumas condições físicas e intelectuais que ainda são fonte de muito preconceito e desinformação na sociedade, vamos agora falar sobre deficiência auditiva.
Existe todo um “universo” e uma cultura relativa a deficientes auditivos não-oralizados, ou seja, aquelas pessoas que nasceram com a deficiência e por isso não puderam ser alfabetizadas adequadamente em língua portuguesa. Essas pessoas aprendem e utilizam uma outra linguagem própria, a linguagem de sinais, ou Libras. Durante muitos anos, tudo que envolvia deficiência auditiva girava em torno da linguagem de sinais. E realmente é de extrema importância todas as ações de inclusão social e acessibilidade em Libras para essas pessoas.
No entanto, nem todos que possuem esta deficiência são surdos completos, e nem todos nasceram assim. Muitos adquirem a deficiência ao longo da vida, por inúmeras razões. São alfabetizados normalmente, se acostumam com o mundo dos sons, e em algum momento da vida perdem parte dessa capacidade. É realmente uma enorme perda, que causa muito sofrimento. A surdez tem um potencial devastador por trazer isolamento social. Porém, com a evolução tecnológica, surgiram e foram cada vez mais aprimorados, os aparelhos auditivos. Hoje, a grande maioria das pessoas que possuem perdas leves e moderadas consegue, com o auxílio dos aparelhos, voltar a ter uma vida normal em todos os sentidos. E até mesmo quem tem perdas mais profundas muitas vezes consegue um ganho enorme em qualidade de vida. Se não ouvem ainda com perfeição, conseguem ser virar muito bem e ter uma vida plena. Os aparelhos auditivos hoje não são mais aqueles trambolhos feios e pouco desenvolvidos de antigamente. Se assemelham a fones bluetooth, são coloridos e muito discretos. Além das inúmeras opções de conectividade e configurações.
Esses aparelhos, tão desenvolvidos, podem ser bem caros, Dependendo do modelo podem chegar a custar mais de 10 mil reais. Há inúmeras opções, de diversas marcas e tipos no mercado. Mas mesmo os modelos mais simples ainda podem ter um valor salgado para a maioria das pessoas em nosso país. Só que a boa notícia é que nosso sistema de saúde, o tão criticado SUS, fornece gratuitamente, a todos que precisarem.
Mas, apesar de tudo isso, ainda há muito preconceito em relação a deficientes auditivos. Muita gente ainda desconhece toda essa evolução em relação às chamadas próteses auditivas, que hoje fazem a deficiência auditiva se assemelhar muito a qualquer problema de visão. É tão comum e tenta gente utiliza óculos ou lentes de contato que as pessoas já nem reparam mais, ou pensam qualquer coisa diferente de alguém que esteja usando óculos.
Por que então seria diferente em relação a alguém que esteja utilizando um aparelho auditivo? Boa parte da explicação se deve ao fato de essa evolução na tecnologia auditiva ser bem mais recente. Antigamente nosso avós utilizavam aqueles aparelhos beges, enormes, e que na verdade não adiantavam muito. Outra parte talvez possa ser creditada ao fato de as pessoas associarem ainda tudo relativo a deficiência auditiva com o mundo das Libras. Como dissemos, é importante a existência desse universo e das políticas de inclusão, mas nem todo deficiente auditivo usa língua de sinais.
Foi justamente nesse contexto que surgiu, há alguns anos, um projeto muito interessante chamado Crônicas da Surdez / Surdos que Ouvem. Paula Pfeifer, uma deficiente auditiva, fez um blog dedicado ao tema, onde escrevia textos baseados no seu dia-a-dia nessa nova condição de vida. Muitos se identificaram com seus textos. O blog bombou e acabou virando livro. Paula passou a ser convidada para palestras por todo o país. A partir da página de seu projeto no Facebook ela resolveu criar um grupo para que os deficientes auditivos e seus familiares pudessem trocar experiências e informações sobre o tema. “O Crônicas da Surdez surgiu em 2010 quando eu saí do armário da surdez e decidi compartilhar as conquistas e desafios com o uso de aparelhos auditivos. O grupo Surdos Que Ouvem surgiu quando o CS venceu o Facebook Community Leadership Program como LATAM Resident, com acesso a um fundo de U$1.000.000 para criar e executar uma projeto em prol do nosso grupo. É uma poderosa rede de afeto, apoio emocional e acesso a informação de qualidade sobre surdez e reabilitação auditiva”, diz Paula.
Ela hoje trabalha exclusivamente com esse projeto, rodando o país (e até no exterior) visando informar as pessoas. São palestras, cursos e entrevistas para diversos veículos de comunicação. “Há muito desconhecimento da população em geral (que ainda acha que surdo é só quem não ouve nada e todo surdo usa libras) que acaba por acarretar uma falta imensa de acessibilidade, empatia e acesso à reabilitação auditiva”, esclarece Paula.
Uma das moderadoras do grupo Surdos que Ouvem no Facebook, auxiliando a Paula no projeto, é a mineira Maria Aroeira. Pedimos pra ela contar pra gente um pouco da sua história e dos desafios referentes à deficiência auditiva:
– Conta pra gente um resumo da sua história.
– Que trabalhos o Crônicas de Surdez / Surdos que Ouvem tem desenvolvido atualmente?
– Como você acha que é a situação de quem tem deficiência auditiva no Brasil hoje em dia? Muitos desafios? Ainda há muito preconceito?
Quando as pessoas pensam em surdo, pensam logo em Libras e que surdo não fala. As pessoas se espantam quando me conhecem porque eu falo. Elas me perguntam como eu sei falar mesmo sendo surda. Há muita desinformação sobre os variados tipos de surdos. Temos no mundo muitas pessoas que nasceram surdas e que foram reabilitadas na fonoterapia e uso dos aparelhos auditivos, e outras pessoas que perderam a audição ao longo da vida, quando já sabiam falar (que aprenderam a falar naturalmente quando possuíam audição natural).
Também existe muito auto-preconceito de pessoas que estão perdendo a audição de forma progressiva e resistem a usar os aparelhos auditivos, por achar que é coisa de velho, que os outros vão passar olhar torto para elas, que vão se preconceituosos com elas. Se trancam dentro do “armário da surdez”. O blog e grupo do Crônicas da Surdez ajuda a mostrar para estas pessoas que existem vários jovens que usam aparelhos auditivos com muito orgulho, que podem ter qualidade de vida melhor por estar ouvindo e entendendo melhor as pessoas. Não podemos ter vergonha de usar tecnologias que nos fazem bem. Tem tantas pessoas que usam óculos para enxergarem melhor, por que os aparelhos auditivos deveriam ser tratados de forma diferente? Devia ser natural usar o que te faz bem!
– Poderia citar alguns casos interessantes de deficientes auditivos de sucesso em suas respectivas áreas?
São inúmeros os casos. No grupo temos médicos cirurgiões, veterinários, psicólogos, advogados, jornalistas, cantores, músicos, engenheiros, professores, atores, fonoaudiólogos, atletas de vôlei, ciclismo, natação, handebol e muito mais que são usuários de aparelhos auditivos ou implantes auditivos. O que quero dizer é que não podemos deixar que a surdez nos limite em nossas capacidades e acreditarmos em nós mesmos. Somos capazes de tudo! Temos inúmeras histórias no blog Crônicas da Surdez (www.cronicasdasurdez.com) e no site Surdos Que Ouvem (www.surdosqueouvem.com). Fizemos uma campanha de vídeos com 12 personagens com deficiência auditiva e contam as suas histórias, que são únicas. Os vídeos estão no site Surdos Que Ouvem.
– Qual a importância do grupo Surdos que Ouvem no Facebook?
Todos os dias chegam pessoas ao grupo com medo da própria condição, fragilizadas e no grupo encontram apoios de quem passa pelos mesmos problemas do cotidiano. A troca de informação também fortalece a pessoa, e dá impulso para buscar o melhor tratamento para a surdez. Trocamos informações de onde buscar um bom otorrino, como configurar bem os aparelhos auditivos, novidades das tecnologias que estão vindo e como fazer para contornar aquele problema. Também rimos e choramos juntos!
– Em relação a legislação e trabalho do governo, ainda há muito a evoluir?
A legislação ainda é muito focada em Libras. Os surdos oralizados e usuários de tecnologias auditivas têm necessidades diferentes como legendas (closed caption) nos cinemas, televisão, teatros, escolas. Também necessitamos de aro magnético (um dispositivo de uso coletivo que leva o som do microfone ao aparelho auditivo, fornecendo melhor qualidade auditiva em ambientes com acústica péssima) nas plataformas de metrô/trem, aeroportos, teatros, cinemas. Fora que ainda falta uma regulamentação no MEC sobre a educação das crianças e adultos com deficiência auditiva que utilizam português oral como primeira língua e tecnologias auditivas. A luta ainda é grande, mas estamos nos unindo para mostrar que existimos e reivindicarmos ao governo sobre o que necessitamos. O leque de acessibilidade precisa ser ampliado, pois Libras não serve para todos, a diversidade precisa ser respeitada.
– O SUS funciona bem para atender a deficientes auditivos? E os médicos particulares brasileiros estão bem preparados para atender nessa área?